Pessoas trans relatam barreiras no acesso a serviços de saúde

Tumores no sistema reprodutivo e na mama podem passar despercebidos no início, o que diminui chance de sucesso do tratamento

 

Yago Tavares Franco, 36, um homem trans, consultou-se com um ginecologista pela primeira vez aos 31 anos. Ele foi à procura de orientação sobre os hormônios que deveria tomar, como parte do processo de transição de gênero, mas saiu do consultório sabendo que tinha uma lesão inicial no útero que poderia evoluir para um câncer.

Tempos depois, após mais um período sem visitar o ginecologista, o problema se agravou e Franco recebeu o diagnóstico de câncer. Neste mês, ele fez uma histerectomia total, que retira o útero.

“Eu não ia ao ginecologista porque tinha vergonha do meu corpo. Imagina um consultório cheio de mulher e só eu de homem ali; ia causar incômodo. Além disso, tem muito médico que não conhece uma pessoa trans”, diz Franco, que trabalha como operador de sistema de segurança.

Franco conta que em uma das vezes que esteve em um consultório de um ginecologista, o médico, sem entender que se tratava de um homem trans, perguntou como haviam lhe transplantado um útero. Em outra ocasião, um médico alegou motivos religiosos para não fazer o procedimento cirúrgico de que Franco necessitava.

“Alguns não sabem nada sobre o assunto por não ter ninguém que possa explicar”, diz Franco. “Quando o caso é este, eu converso”, afirma.

Homens e mulheres transexuais relatam dificuldades para ter acesso aos serviços públicos e privados de saúde pela falta de preparo das instituições e dos profissionais para atenderem às suas necessidades. Como consequência, doenças demoram para serem identificadas e tratadas, especialmente tumores no sistema reprodutivo e na mama.

Pessoas trans são aquelas que tiveram um gênero (masculino ou feminino) atribuído a elas no nascimento de acordo com seus órgãos genitais (pênis ou vagina), mas que não se identificam com ele. Essas pessoas podem ser homens, mulheres, ou não binárias, isto é, que não se definem por nenhum dos dois gêneros mais tradicionais.

Uma pessoa trans pode escolher fazer tratamentos hormonais ou ainda procedimentos cirúrgicos (cirurgia de redesignação sexual) para que o corpo expresse características do gênero no qual ela se reconhece.

Sem cirurgia, homens trans continuam tendo útero e ovários, e mulheres trans têm próstata, e exames de rastreamento são necessários.

“Há um preconceito institucional contra essas pessoas que é uma barreira de acesso à saúde”, diz o médico ginecologista Sérgio Okano, professor na Universidade de Ribeirão Preto e médico-assistente do Ambulatório de Incongruência de Gênero da USP.

“Muitos profissionais não sabem como abordar uma pessoa trans de maneira respeitosa. Muitos não sabem o que é possível oferecer de cuidado para a saúde dessa população” afirma o médico. “Como consequência, o diagnóstico de uma doença acaba vindo mais tarde, o que aumenta a necessidade de tratamentos mais invasivos e a mortalidade”, diz.

De acordo com a médica patologista Eni Medeiros, que é mulher trans, são raros os serviços de saúde capazes de acolher essa população. “Há muita violência velada”, diz. “A população trans ainda é marginalizada. Falta acesso à saúde para muitos, e quando há o acesso, passam por constrangimentos.”

Uma das reclamações mais frequentes é de profissionais que se recusam a usar o nome social da pessoa. Os constrangimentos vão tornando o sistema de saúde hostil à presença de pessoas trans. “São pessoas que precisam de cuidados para todos os órgãos, elas podem chegar a qualquer tipo de consultório; pessoas trans não são apenas os órgãos genitais”, diz Okano.

A disforia de gênero, um sentimento de desconforto relacionado às genitais, pode ser outra barreira para os cuidados preventivos, diz Medeiros. “Para algumas pessoas trans, cuidar do órgão genital é muito doloroso, e assim elas acabam negligenciando aquela parte do corpo e só procuram um médico quando a situação já está mais grave”, afirma.

Um dos fatores para o surgimento do câncer de pênis, por exemplo, é a falta de higiene adequada.

Os especialistas apontam que os dados disponíveis ainda não são suficientes para estimar com maior precisão os riscos dos diversos tipos de câncer em pessoas trans, mas sabe-se que alguns hormônios femininos estão relacionados ao surgimento do câncer de mama.

Um dos maiores estudos sobre o tema, realizado na Holanda com mais de 2.000 mulheres trans e mais de mil homens trans em tratamento hormonal, mostrou que mulheres trans têm risco maior de câncer de mama do que os homens cis (que se identificam com o gênero atribuido no nascimento). Os homens trans, por sua vez, têm menor risco do que mulheres cis. Os resultados foram publicados em 2019 na revista científica The BMJ.

“O tratamento hormonal claramente faz aumentar o risco de câncer de mama em mulheres trans. Em homens trans, mesmo nos que fazem a retirada da mama, algum tecido mamário pode restar e apresentar algum risco”, diz o mastologista Felipe Andrade, diretor da Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM).

De acordo com o médico, é preciso fazer o acompanhamento e os exames quando for nescessário. “Mas é importante contar com uma equipe preparada para tratar esse público de uma maneira acolhedora e humana”, afirma.

O acolhimento fez a diferença para Gabriel Hoffmann Rodrigues da Silva, 23, estudante e homem trans. Quando chegou ao Centro de Saúde Modelo, instituição pública de Porto Alegre que tem um ambulatório especializado em saúde da população trans, Silva já havia passado por outros médicos (ginecologistas e endocrinologistas) que não conseguiram ajudar na transição de gênero.

“Não sabemos a quem recorrer, ficamos perdidos. Somos tratados com rejeição e até grosseria e hostilidade por alguns médicos”, afirma.

Durante os exames que antecedem a mastectomia masculinizadora (retirada da mama para adequação corporal), Silva descobriu um nódulo pequeno que poderia se tornar um câncer. Agora, ele faz o acompanhamento com exames periódicos enquanto aguarda a mastectomia. “O diagnóstico me abalou, mas também me sinto mais feliz porque sei que estou no caminho certo, com profissionais que entendem minha condição”, diz.

Em 2005, quando recebeu o primeiro diagnóstico de um câncer perianal, a mulher trans Jacqueline Brasil, 56, militar da reserva da Marinha, diz que se sentiu sozinha e desamparada.

“Não tive com quem conversar, era difícil ter acesso às informações. É muito difícil para nós, mulheres trans, falarmos sobre nossas doenças. O que eu fiz foi chorar e refletir”, afirma Brasil. Hoje, ela ainda faz um tratamento para o câncer que pode estar ligado ao silicone industrial que injetou na cintura quando era mais jovem para a aparência ficar mais feminina.

“Conheço outras três mulheres trans que morreram com câncer em casa, sem ter acesso ao tratamento”, diz Brasil. A militar da reserva faz seu tratamento no SUS e em instituições militares.

“Os médicos precisam urgentemente de treinamento para atender a população trans, principalmente urologistas e ginecologistas”, diz.

Okano afirma que a prevalência do câncer aumenta conforme a mortalidade na população diminui. “Na população trans, ainda há muitas mortes precoces por uso de substâncias, violência e suicídios; mas também temos cada vez mais pessoas trans envelhecendo, e precisamos divulgar os cuidados necessários”, conclui.

 

FONTE: FOLHA DE SÃO PAULO